As palavras não são neutras e cada uma orienta a «história» para uma direção. Como escolhemos as palavras dos nossos textos? De que modo a nossa perceção, a cultura e outras influências interferem nessa escolha?
A propósito da Escrita Erótica – curso estreado neste mês -, trazemos o texto seguinte, que nos convida a refletir sobre o modo como descrevemos o corpo masculino e o feminino. Enquanto lê, vá formando a imagem do corpo que as palavras descrevem.
O CORPO
Ali estava o seu corpo adormecido, aninhado no seu descanso, tão quieto, tão presente na luz amarelada, definindo-se por seu peso e por aquele estar quieto, todo tomado de luz, sem contorno que separasse corpo e luz, os músculos lisos debaixo da pele, tão escorridos na presença quieta, quase diluídos, ninho de seu próprio descanso, prolongando os lençóis desfeitos e suas curvas frouxas de fadiga, e a cova morna do colchão, e a luz quieta e densa como pele amarela sobre a outra, enchendo o quarto até ao tecto e às paredes, absorvendo em si, como corpos amáveis naquele sono, o candeeiro e a mesa baixa e os livros e as roupas, todo o quarto feito camadas sucessivas de luz e substância variada rodeando o centro, núcleo de respirar muito brando, e a tudo se propagando esse único e muito brando movimento, a pele doirada estendendo-se um pouco, no peito alto, de curva possante e com os seus mamilos quase rosados, e as costas movendo-se também com a mesma unida e certa ondulação da água mansa, as costas bem talhadas, estreitando-se do largo dos ombros até à anca com a rectidão da pedra talhada, mas de braço a braço a curva bombeada, alta e suave, que a meio se cava bruscamente como o leito dum rio, e movendo-se ainda o osso da anca, delicado, anguloso, saliente agora de sua habitual discrição no corpo que repousa de lado e se debruça, leve, cavando um pouco a cintura, escondendo o ventre e a densa doçura dos pêlos mornos, e um pouco o sexo, alteando o redondo – no entanto severo, cinzelado – das duas nádegas estreitas, aparecendo depois o sexo entre as duas pernas que se abrem, uma estendida sobre a cama e a outra levemente flectida, esvaindo-se a coxa da anca alteada até à cama, onde o joelho pousa, e aí segue a perna tão abandonada no lençol que quase o fere com seu peso, e entre as coxas, renascendo da sombra do ventre escondido, e que se estende como savana cálida, que em si retém o amarelo da luz, na curva nascente das nádegas, nas coxas, nas pernas, entre as coxas o seu sexo, os dois pequenos pomos cuja firmeza se desenha na pele branda e a corola recolhida de seu pénis adormecido.
18/5/71
O texto O Corpo está incluído nas Novas Cartas Portuguesas.
O livro saiu em 1972 e foi apreendido e destruído pela censura, considerado uma obra «pornográfica e atentatória da moral pública». Além de trazer à luz a sexualidade feminina, e modo como estava subjugada ao patriarcado católico masculino, o livro denunciava a situação política e social que afetava as mulheres de forma mais dura. Inclui 120 textos, não assinados individualmente, numa inédita experiência de autoria conjunta.